Anedotas

Por Tarcisio Patricio de Araujo

Publicado em Economia e negócios | 16/02/2021

Anedotas, além de “lavar a alma”, ecoam sonhos, frustrações e crítica a tudo e a todos. Pinço duas. Rússia, início dos anos 1990, pós-reestruturação da economia e abertura política, lideradas por Gorbatchev (secretário geral do Partido Comunista), e pós-queda do Muro de Berlim (1989).
Desde inícios dos 1960 ­- vivia-se a Era Khruschov (1953-64), quando dos primeiros ensaios de flexibilização do coletivismo – a cozinha assumira o lugar de cochichos e anedotas. Saíam os apartamentos comunitários e vinham as “cozinhas individuais”. A peça: ‘Comunista era aquele que lia Marx, o anticomunista era aquele que o compreendia’ (Svetlana Aleksievitch, ‘O fim do homem soviético’, 2015, p. 22). Poderia ter sido uma pérola de Roberto Campos.

O desgaste de políticos, do Parlamento, e governos – desde o municipal ao federal – vem de longe e se aguça desde os tempos do “mensalão” (2003-2005)


A outra peça é brasileira. Um curto vídeo, WhatsApp ao invés da cozinha: um cidadão, voz engrolada pela embriaguez, pede dinheiro para tomar cachaça, “não é pra alimentação, é pra beber”, e arremata: “garanto que a verba que você vai aplicar é a única, neste país, que não será desviada”.
A primeira estória e o país de referência trazem dois sonhos frustrados. Primeiro, o socialismo que redimiria o ser humano, trazendo paz, igualdade, fim da miséria. E o delírio trotskysta: além da eliminação do Estado (e o fim da “luta de classes”), a todo cidadão seria assegurada, no comunismo (estágio superior), a oportunidade de ser trabalhador na manhã e à tarde se dedicar ao ócio preenchido com artesanato, pintura, música…O novo mundo, não-socialista, que adviria da Era Gorbachov, traria o mercado, liberdade econômica e elevação do padrão de consumo, e o fim do autoritarismo. Social-democracia.

Schumpeter e o alerta de que o socialismo poderia se esgotar nos horrores ou nas glórias do imperialismo

Hoje, a Rússia tem em Putin, no poder desde 1999, o suprassumo do comando imperial, a completar e possivelmente ultrapassar um quarto de século. As particularidades de cada país… O povo russo parece amar czares.
É um privilégio poder olhar para trás e captar a perspectiva histórica. Impressiona vermos antecipações, não do desfecho, mas da impossibilidade de materialização do sonho. A antevisão de George Orwell (1984) é amplamente conhecida. Já o economista e historiador Joseph Alois Schumpeter (Capitalism, Socialism and Democracy, 1943) antecipava, no capítulo XIV, em trecho escrito em 1935, que o socialismo poderia “burn up” (se esgotar) “nos horrores ou na glória de guerras imperialistas” (edição de 1987, p. 162). Acrescenta o alerta de que, em termos de previsões, um século seria “curto prazo”. Notar que Schumpeter simpatizava com a tese marxista da tendência à auto-destruição do capitalismo, em direção ao socialismo.

Todavia, o economista e historiador austríaco não descartava outros 50 anos de evolução capitalista, não vendo razões “puramente econômicas” pelas quais tal sistema não poderia ter outra exitosa fase. Longe, portanto, do “materialismo dialético” e do determinismo histórico. Acertou.
O que nos traz a anedota brasileira? O desgaste de políticos, do Parlamento, e governos – desde o municipal ao federal – vem de longe e se aguça desde os tempos do “mensalão” (2003-2005). Processo anterior à Operação Lava Jato, inovação institucional há muito esperada, agora o Judas da vez – falsamente alardeada como “pai e mãe” do “bolsonarismo” e como razão de todas as mazelas de nossa tragédia.

Ouvem-se acordes da alegria de pintos no lixo: hostes da esquerda, refratárias à Lava Jato e que agem como se Lula fosse o inocente entre culpados do PT, narrativa desde sempre alimentada pelo próprio Chefe; em proximidade com os “inocentes” do Centrão, celebram o ataque à operação cujos êxitos são capciosamente ignorados. Barulho que contrasta com o silêncio diante de evidentes ameaças à democracia. Não sai daí uma palavra pró-construção de um aparato legal preventivo da corrupção. Detonada ou ‘esquecida’ a ideia de institucionalização definitiva da prisão em segunda instância. Trágica farsa.

Tarcisio Patricio de Araujo

Tarcisio Patricio de Araujo

Tarcisio Patricio de Araujo é economista, PhD em Economia pelo University College London e professor da UFPE aposentado. Também ensinou na Unicap. Ocupou cargos de gestão na UFPE, no Governo Jarbas Vasconcelos (1999-2000), e na Fundaj – Coordenação Geral de Estudos Econômicos e Populacionais. É pesquisador e consultor, com publicações (livros e artigos) nas áreas de políticas públicas, educação, mercado de trabalho e agroecologia – entre outras. Trabalhos de pesquisa e consultoria para governos federal e estaduais, Banco Mundial, SUDENE, FIDA. Este artigo foi publicado originalmente no Jornal do Commercio.

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